Apesar de não ser tarefa fácil, a legislação portuguesa permite aos pais deserdar filhos em vida. No entanto, não basta que essa vontade seja expressa em testamento sem motivo válido. Devido ao vínculo familiar próximo, os filhos encontram-se protegidos pela lei, não podendo ser afastados da sucessão. Porém, existem três circunstâncias específicas em que podes deserdar um filho. Vamos conhecê-las?
Como funciona a divisão de uma herança?
Quando morres, a tua herança é dividida em duas partes: a quota legítima e a quota disponível. A quota disponível diz respeito à parcela dos teus bens que podes distribuir livremente, ao passo que a quota legítima está “destinada” aos herdeiros legítimos – cônjuge, pais, irmãos e filhos. Como tal, os filhos têm, por lei, direito a parte da herança, mas este pode ser-lhes retirado mediante casos excecionais.
Por norma, a quota legítima da herança é de dois terços do seu valor, à exceção de situações em que o herdeiro é apenas o cônjuge ou apenas um descendente. Nesses casos, a quota legítima é de metade do valor da herança.
Imagina que tens um cônjuge e dois filhos: neste caso, a quota legítima corresponderá a dois terços do valor da tua herança e será partilhada pelos três herdeiros. O correspondente ao outro terço pode ser livremente distribuído, não tendo obrigatoriedade de ser deixado a algum familiar.
Neste caso, precisas de deixar definido em testamento a quem se destina a quota disponível. Na ausência deste documento, a herança é distribuída, na totalidade, pelos herdeiros legítimos.
Em que situações posso deserdar um filho?
Caso tenhas cortado relações com o teu filho ou tenha havido algum desentendimento que te leve a querer deserdá-lo, fica a saber que não é assim tão simples. Um herdeiro legítimo é protegido pela lei, não podendo ser afastado da herança, salvo algumas exceções muito específicas.
Um pai só pode deserdar um filho caso tenha ocorrido alguma das seguintes situações:
O filho foi condenado por crime doloso contra o pai, contra os seus bens ou contra a sua honra com uma pena superior a seis meses de prisão;
O filho foi condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra o pai;
O filho recusou alimento ao pai sem justa causa.
Estas situações são válidas na deserdação de um filho, bem como de qualquer outro herdeiro legítimo, desde que se tratem de ações do herdeiro contra o autor da sucessão.
E através da incapacidade por indignidade?
Para além das formas já mencionadas, existe ainda outro método pelo qual é possível deserdar um filho, através do mecanismo da incapacidade por indignidade. Segundo o Artigo 2034.º do Código Civil, existem determinados atos que tornam um filho indigno de receber herança:
Se tiver sido condenado como autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adoptado;
Caso tenha sido condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas, relativamente a crime a que corresponda pena de prisão superior a dois anos, qualquer que seja a sua natureza;
Se, por meio de dolo ou coacção, induziu o autor da sucessão a fazer, revogar ou modificar o testamento, ou disso o impediu;
Caso tenha dolosamente subtraído, ocultado, inutilizado, falsificado ou suprimido o testamento, antes ou depois da morte do autor da sucessão, ou se aproveitou de algum desses factos.
Basta que se verifique apenas uma das ocorrências mencionadas acima para que a incapacidade por indignidade seja aplicada automaticamente se os bens da herança não estiverem já na posse do indigno.
Se o sujeito indigno já detiver os bens, então este mecanismo terá de ser judicialmente decretado, sendo que se pode aplicar a qualquer tipo de herdeiro.
Como retirar um filho da herança?
A deserdação tem que ser expressamente mencionada no testamento com indicação da causa, preferencialmente enquadrando-a nas exceções dos motivos legais já mencionados e, após a morte do autor da sucessão – neste caso, do pai -, o mesmo será validado por um notário que confirmará a autenticidade do documento e a legitimidade do pedido.
No entanto, o filho deserdado pode recorrer a tribunal para contestar a decisão, alegando a inexistência de causa invocada pelo pai – este tem, no máximo, dois anos a contar da abertura do testamento para manifestar a sua intenção de se opor.
Decidir deserdar um filho em vida não é fácil. A nível pessoal pode ser uma decisão com elevada carga emocional e a nível burocrático acarreta algumas complicações, uma vez que a lei protege os herdeiros legítimos colocando entraves a esta decisão.
Se realmente pretendes deserdar um filho, informa-te muito bem sobre os procedimentos e certifica-te que tens ao teu lado pessoas de confiança que te possam apoiar em todo o processo de deserdação.